REVISTA DE CIENCIAS SOCIALES Y HUMANIDADESRevista de Cências Sociais e HumanasJournal of Social Sciences and HumanitiesRELIGACIÓN

A resistência estudantil no Território Federal do Amapá durante a ditadura militar no Brasil

Student resistance in the Federal Territory of Amapá during the military dictatorship in Brazil

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Marcella Viana

Universidade De Brasília - Brasil

Brasília, Brasil

marcella.viana@aluno.unb.br

RESUMO

O Movimento Estudantil do Território Federal do Amapá caracteriza-se por uma história atravessada de contradições e complexidades. Dentre estas, estão as atuações, durante o regime militar, das organizações clandestinas e da principal entidade estudantil do território na época, a União dos Estudantes dos Cursos Secundários do Amapá (UECSA). A partir do recorte temporal da Ditadura Militar, entre os anos de 1964 e 1968, se estabelece como objetivo deste artigo, investigar como se deu o processo de resistência ao regime militar por parte destas organizações, inclusive da UECSA, que apesar de ter deliberado apoio ao golpe através de atos públicos, teve resistência ao mesmo dentro de suas próprias fileiras. Existiram grupos dentro da entidade que não apenas não apoiaram o golpe militar, como construíram atos contra o regime. Como base documental, foram utilizados levantamento publicado em 2017 do Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá (CEV-AP), produzido entre os anos de 2013 e 2016, o arquivo não publicado do relatório, que inclui as oitivas e documentos oficiais que foram cedidos pela CEV-AP para a realização desta pesquisa, além de registros pessoais de colaboradores dos grupos clandestinos. Os estudantes do Território Federal do Amapá, por razões estruturais e culturais, acabaram tendo reações diferentes das que o movimento estudantil havia tendo no restante do país. Foram ações de apoio ao golpe militar, com células bastante restritas de resistência.

Palavras-chave: Ditadura militar; Movimento Estudantil; Amapá; Resistência.

ABSTRACT

The Student Movement in the Federal Territory of Amapá is characterized by history crossed by contradictions and complexities. Among these are the actions, during the military regime, of clandestine organizations and of the main student entity of the territory at the time, the Union of Students of Secondary Courses of Amapá (UECSA). The objective of this article is to investigate the process of resistance to the military regime by these organizations, including UECSA, which despite having deliberated support for the coup, resisted it within its own ranks. As a documental base, we will use the survey published in 2017 of the Report of the Amapá State Truth Commission (CEV-AP), produced between the years 2013 and 2016, the unpublished archive of the report, which includes the hearings and official documents that were ceded by the CEV-AP to carry out this research, as well as personal records of collaborators of the clandestine groups. The students of the Federal Territory of Amapá, for structural and cultural reasons, ended up having different reactions from those that the student movement had had in the rest of the country. They were actions in support of the military coup, with very restricted cells of resistance.

Keywords: Military dictatorship; Student Movement; Amapá; Resistance.

1. INTRODUÇÃO

O golpe militar que se estabeleceu no Brasil a partir do ano de 1964, influenciou, de muitas formas, as organizações e movimentos sociais no país. A exemplo disso, em âmbito nacional referente ao Movimento Estudantil, “uma das primeiras ações dos militares após o golpe de Estado, em 1964, foi o incêndio do prédio da UNE. O ato em si já demonstrou a posição dos novos governantes em relação à associação.” (Muller, 2010, p. 21).

A União Nacional dos Estudantes (UNE) exerceu durante os anos de ditadura militar no Brasil, papel de forte opositora à ditadura, posicionamento que se estendeu, de forma aberta, até a decretação do Ato Institucional n. 5 (1968) e do Decreto-Lei n. 47718 (1969). A partir disso, a UNE passou a atuar na clandestinidade, mantendo a continuidade da luta de resistência à ditadura. De forma geral, o “movimento Estudantil foi responsável por muitas ações de protesto em oposição ao regime e teve apoio de partidos e organizações políticas” (Santos, 2009, p. 101).

No Amapá, na época Território Federal, a situação não destoou completamente. O Movimento Estudantil foi responsável por muitas ações de resistência, “recebeu apoio de partidos e organizações sindicais e atuou na clandestinidade” (CEV, Amapá. 2017, p. 28). Apesar de uma das suas peculiaridades ter sido o apoio deliberado da principal entidade estudantil organizada do território, a União dos Estudantes do Curso Secundarista do Amapá (UECSA), as atuações de grupos de resistência ao golpe não foram inexistentes.

A dinâmica do movimento estudantil no Amapá precisa de análises que abarquem seus contextos regional, territorial e estrutural. O Território, que à época não contava com instituições de ensino superior, teve um movimento estudantil secundarista organizado através de “grupos independentes, grêmios, organizações e dissidências” (CEV, Amapá, 2017, p. 28). Algumas outras características se baseiam na:

Ausência de uma Instituição de Ensino Superior no Território, o que conservava o movimento organizado restrito à Educação Básica; a maciça presença de filhos e filhas de funcionários da máquina estatal no sistema público de ensino; e a intensa propaganda feita pelo governo nas escolas. Portanto, o controle direto que o governo territorial buscou exercer sobre a UECSA, desde a sua criação, teria levado parte de estudantes do movimento secundarista a apoiar o golpe. (CEV, Amapá. 2017, p. 30)

Esse controle direto, ao qual o Relatório da Comissão Estadual da Verdade se refere, diz respeito, por exemplo, a atos como a criação do primeiro Estatuto da UECSA, que, em seu Artigo 3 estabelece, entre outros objetivos da entidade, que a mesma deve “(f) colaborar com as autoridades de ensino” (Estatuto da UECSA, 12/07/1950). De acordo com Randolfe Rodrigues, a UECSA, logo nesse primeiro Estatuto, demonstra “uma clara preocupação em caracterizar a UECSA não como uma entidade questionadora das autoridades constituídas; ao contrário, como uma colaboradora destas” (Rodrigues, 2009, p. 126).

Isso, no entanto, apesar de ter uma clara influência externa, não foi a única corrente que prevaleceu no decorrer dos anos dentro da entidade. Em depoimentos cedidos à Comissão Estadual da Verdade do Amapá, opiniões e posturas divergentes também foram observadas. (CEV, Amapá, 2017, p. 30)

É preciso, a partir daqui averiguar a construção do Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá Francisco das Chagas Bezerra – Chaguinha, em seus pormenores. Quais elementos o compõe, em que momento as entrevistas foram levantadas, com quem esse documento oficial dialoga, que tipos de narrativas estão presentes nele. Todo esse processo contribui para a acepção da pesquisa histórica por parte, inclusive, do leitor. Em suma, incorreremos em uma análise de fonte para correlacionar com a metodologia.

A priori foi necessário definir quais das fontes utilizadas para a construção do relatório seriam utilizadas para estabelecer a análise da pesquisa. Levando em consideração a ausência de um arquivo público no Amapá e as limitadas fontes escritas disponíveis sobre Movimento Estudantil durante o período, as fontes orais, cedidas à pesquisa em sua integralidade, foram selecionadas para fazer essa mediação. Justifica-se, inclusive, pelo próprio relatório da CEV-AP, em sua maior parte, ter sido constituído pelo relato destas fontes orais.

O objeto da presente pesquisa é o Movimento Estudantil do Amapá durante a ditadura civil-militar sob a luz do Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá – Francisco das Chagas Bezerra – Chaguinha. O relatório foi apresentado no ano de 2017 após o recolhimento de dados, pesquisa e levantamento de fontes e organização do documento feito desde o ano de 2013. A CEV-AP foi criada por iniciativa do Governo do Estado do Amapá por meio da Lei 1.756, de 24 de junho de 2013. Foi a primeira Comissão da Verdade a ser criada na Amazônia e acompanhou, para sua elaboração, as diretrizes e finalidades estabelecidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). A Comissão cedeu para realização desta pesquisa, os depoimentos orais que foram recolhidos durantes os anos de trabalho da equipe.

Este artigo tem o intuito de, a partir da análise – primordialmente – destes depoimentos e do relatório final como um todo, analisar a atuação do Movimento Estudantil no Amapá durante o período, tendo como parâmetro as ações desenvolvidas por estudantes em defesa de seus interesses coletivos, considerando o movimento como sendo um importante espaço de atuação política e ingresso dos mesmos na vida política da sociedade, ou ainda, como define Feuer “como uma coalização de estudantes inspirada por uma rebelião emocional em que estão latentes a desilusão e a rejeição dos valores da velha geração” (Feuer, 1969 apud Bringer, 2009).

Ainda que este trabalho tenha como enfoque principal a atuação estudantil, ele se orienta pelo combate ao esquecimento das práticas autoritárias do regime ditatorial e das formas de resistência a este, e tem por objetivo considerar os movimentos de resistência presentes nas atuações do Movimento Estudantil do Amapá no período a que se propõe. E não somente isso, mas objetiva contribuir na construção do acervo de uma memória estudantil para o Estado, que, até o momento, conta com poucos trabalhos na Universidade Federal do Estado.

A motivação dessa pesquisa angariou, de diversas frentes, algumas justificativas. De acordo com João Roberto Martins Filho, “no começo dos anos 60, uma politização até então desconhecida tomou conta do meio universitário brasileiro” (Martins Filho, 1998, p. 14). Os universitários representavam a parcela da população que tinha acesso ao ensino superior que estava em ascensão intelectual, e isso corroborava para a compreensão política do que estava por acontecer. Isso foi diferente no Território Federal do Amapá que, na época, não contava com instituições de Ensino Superior.

Os Movimentos Estudantis tanto regionais quanto nacionais foram grandes oposicionistas dos governos ditatoriais-militares e um dos principais responsáveis pela “explosão” do ano de 1968 no país, fazendo jus às lutas que vinham travando nos últimos anos dentro das universidades, das escolas, propondo melhorias e soluções aos problemas das mesmas, o que sempre se tratou de sua fundamentação básica. No Amapá, na época ainda território federal, a conjuntura foi diferente. A sociedade já vivia sob a égide autoritária e ditatorial, fazendo com que a sociedade tardasse em compreender o que estava acontecendo no restante do país.

Especificamente quanto aos estudantes, só se teve entendimento do que se passava quando as agremiações foram fechadas e quando seus participantes saíram do território para somar com outros estados nos Congressos da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES). “A convivência com práticas autoritárias, a privações de liberdades, a subordinação e a censura à liberdade de expressão faziam partes das relações institucionalizadas e do cotidiano da sociedade amapaense muito anterior ao ano de 1964.” (Silva, 2013, p. 2).

Seguindo este parâmetro, os estudantes, mesmo que organizados, eram detentores de uma possível perpetuação da prática de seus pais, os então funcionários públicos ligados diretamente ao governo, e isso dificultava qualquer tipo de manifestação e contribuía para que os movimentos se atrelassem ao estado.

Foucault discorre sobre o poder atentando para sua dissolução, demonstrando como o mesmo não se reduz aos aparelhos de Estado ou ainda às macros relações sociais. Ele se infiltra, permanece, é sustentado, e segundo Dorival da Costa dos Santos (2001, p. 43), “somente assim a construção teórica denominada de cultura política pode ganhar status interpretativo”. E foi assim, como uma infiltração ou herança, que os filhos e filhas desta elite política se adequaram à cultura pré-estabelecida de acordo com o que era proposto em território local, e isso começou a florescer a partir do momento da implantação do Território, que traz consigo o aumento da infraestrutura educacional, permitindo o alargamento da participação estudantil não só nas escolas, mas dentro dos movimentos sociais.

Na contramão do que ocorreu em boa parte do país, a União dos Estudantes dos Cursos Secundários do Amapá (UECSA), considerada na época a principal agremiação estudantil do estado, não só apoiou o golpe, como promoveu eventos contra a “ameaça comunista” nacional. (Rodrigues, 2009, p. 134).

Sustenta-se que a abordagem deste tema se torna relevante, uma vez que é necessário compreender a trajetória do movimento estudantil no estado e suas relações para que possamos ter a chance de entender como e/ou porque e como o movimento estudantil promoveu atos de resistência contra o regime militar. A utilização das fontes reunidas e cedidas pela CEV-AP é um marco importante no desenrolar da formação desse acervo.

O recorte temporal (1964 a 1968) tem como base o período em que fora possível externar, de maneira um pouco mais incisiva, a oposição política ao regime em espaços públicos e através de entidades representativas oficialmente estruturadas, tendo em vista que após o Ato Institucional nº 5, a repressão tomou novos e mais grosseiros rumos, impedindo a resistência aberta e esfacelando entidades representativas estudantis.

É importante discorrer também, sobre a construção do caráter regional durante a constituição do Território Federal do Amapá (TFA), e como essa construção favoreceu o esquecimento de particularidades, sobretudo importantes para uma real compreensão do sentido de se estudar uma história regional do Amapá. De acordo com Indira Marques (2008, p. 30), “no Amapá, a ação da elite político-administrativa foi fundamental para forjar simbólica e objetivamente o caráter regional e também a imagem de progresso do TFA como predestinado ao futuro estado”, ou seja, não se tratava de uma região totalmente estabelecida, mas de um processo constitutivo que teve participação direta de uma ação política da base territorial. A reivindicação regionalista neste trabalho, é uma resposta ao estigma que fora produzido no território. Faz-se necessário a reivindicação de existência e identidade regional onde, consequentemente, instala-se a pesquisa histórica.

Portanto, o problema central desse projeto instala-se na já exposta ausência de pesquisas com foco prioritário ou unitário do tema no Estado. Mas, somente isto não esgota a investigação. A discussão sobre a resistência do Movimento Estudantil ainda é pouco debatida, queremos, a partir deste e de outros trabalhos, contribuir de forma significativa na construção deste acervo.

2. METÓDOS

Para efeito de desenvolvimento desta pesquisa, utilizo, além do relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amapá, fontes orais que, no caso, são os relatos dos depoentes que foram cedidos à CEV-AP para construção do relatório. Nem todos os depoimentos foram utilizados na construção do relatório final, mas esses depoimentos foram cedidos em sua integralidade pela CEV-AP para fins de pesquisa. Os depoimentos utilizados na construção desse artigo foram os que especificamente falaram, ou pelo menos mencionaram algo sobre o Movimento Estudantil.

Como uma das fontes trata-se de depoimentos, torna-se necessário uma breve discussão sobre História Oral. De acordo com Jorge Eduardo Lozano (2006, p. 16), a “história oral é mais do que uma decisão técnica ou de procedimento”, ela não tem como objetivo exclusivo a formação de arquivos orais nem tampouco se trata da elaboração de roteiros esquematizados que necessariamente precisam ser seguidos e posteriormente transcritos. Ela é, antes, “um espaço de contato e influência interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com ênfase nos fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer interpretações qualitativas de processos histórico-sociais” (Lozano, 2006, p. 16).

A importância da utilização da história oral aqui, neste momento do trabalho, não se trata somente da exploração da subjetividade dos atores sociais que viveram na época da ditadura civil-militar no Amapá nem da oposição à “objetividade” de fontes escritas, mas se apresenta como acréscimo de novos atores que, por um motivo ou outro, deixaram de ser considerados nos escritos. Para François “a história oral não somente suscita novos objetos e uma nova documentação (...) como também estabelece uma relação original entre o historiador e os sujeitos da história” (2006, p. 9).

Como já fora destacado anteriormente, o Movimento Estudantil, não teve espaço cativo nos trabalhos sobre o período. Foram apenas recortes, perpassados ou reproduzidos, às vezes apenas mencionados, que não correspondem a importância historiográfica do movimento do TFA da época. A utilização da História Oral nesse trabalho não se dá apenas nessa “descoberta” de novos atores, mas na consideração de seu esquecimento.

A História Oral, ao propor um interesse pela oralidade, tenta destacar sua análise “na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais” (Lozano, 2006, p. 17) e permite, sobretudo,

[...] ampliar o conhecimento sobre acontecimentos e conjunturas do passado através do estudo aprofundado de experiências e versões particulares; de procurar compreender a sociedade através do indivíduo que nela viveu; de estabelecer relações entre o geral e o particular através da análise comparativa de diferentes versões e testemunhos. (Alberti, 1989, p. 3).

A necessidade da utilização da História Oral na compreensão desse recorte, me auxiliou a contribuir na construção da historiografia de uma sociedade, um período, um movimento ou, pelo menos aqui, da estruturação dessa sociedade sobre o enfoque estudantil. Estabelecer essas relações entre o geral e o particular nos ampliou a perspectiva sobre a pesquisa.

O trabalho desse método de pesquisa histórica, levou em consideração o âmbito subjetivo da experiência humana e amplia, no nível social, a categoria de produção dos conhecimentos históricos. Fazer História Oral é produzir conhecimentos históricos científicos, não se trata de uma reunião de relatos da “vida dos outros”.

Ao utilizar entrevistas, mesmo que não realizadas por mim, mas que foram cedidas pela Comissão Estadual da Verdade do Amapá ou retiradas de outros trabalhos, buscou solidificar a intenção deste artigo, uma vez que, além da escassez de fontes escritas sobre o tema, as fontes orais são legítimas, a se considerar um extenso debate e de suma importância para a ampliação do conhecimento histórico aqui proposto.

Após a organização e seleção das entrevistas que foram utilizadas, realizei um debate teórico com pesquisas acerca do movimento Estudantil, democracias, ditaduras e resistências de movimentos sociais no país durante o período do regime militar. Realizei fichamento dos artigos que, de alguma forma, me auxiliariam na construção da escrita, ao mesmo tempo que separei as entrevistas e entrevistados entre “apoiadores do golpe” e “movimentos de resistência ao golpe”.

Utilizei as entrevistas cedidas em sua integralidade, como fora transcrita pela equipe e, algumas, executei a transcrição. O rigor científico na realização das mesmas pela CEV-AP, é comprovada a partir e inclusive de sua composição. A comissão foi composta por membros indicados pelo Governo do Estado do Amapá, respeitando critérios técnicos, profissionais e de experiência teórica ou prática relacionados ao estudo da ditadura civil-militar e defesa dos direitos humanos. Foram realizadas 38 oitivas com homens e mulheres que de alguma forma vivenciaram a ditadura no TFA. Foram utilizados documentos de apoio na construção do relatório, como documentos pesquisados em arquivos públicos setoriais, secretarias de estado, do judiciário estadual e da imprensa oficial, jornais, periódicos, além de documentos coletados com os próprios entrevistados.

3. DESENVOLVIMENTO

O nome escolhido para o relatório faz referência a Francisco das Chagas Bezerra, o “Chaguinha”, cearense da cidade de Quixadá, nascido em 15 de novembro de 1907. De acordo com a apresentação do relatório, “Chaguinha era um homem simples e simboliza a história de muitos outros homens e mulheres que exerceram um papel significativo na resistência política no Amapá.” (CEV-AP, 2017, p. 7). Ainda de acordo com o relatório, a escolha do nome se deu pela forte representação de Chaguinha como um homem simples e resistente à ditadura no TFA.

A Comissão da Verdade Nacional nasceu sob a justificativa de uma reparação histórica, mas também em respostas às recomendações e punições que o país vinha tomando por não “passar sua história a limpo”.

No Brasil, somente quase trinta anos depois do fim da ditadura e cinquenta de seu começo, é criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) pela Presidente Dilma Rousseff, com a Lei nº 12.5282, de 18 de novembro de 2011, como uma das providências que o País precisou tomar diante da condenação que sofreu pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em virtude do episódio conhecido como Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”, 1972-1975), durante a ditadura civil-militar no País (1964-1985). (Daltoé, 2016, p. 154).

Ou seja, outros países que, em algum momento de sua história, estiveram sob uma ditadura já haviam construído seus relatórios e punido os responsáveis pelos diversos crimes cometidos em seus regimes. O Brasil, a partir da criação da CNV, criou um espaço institucional para que não mais apenas a academia falasse sobre o assunto, mas o próprio Estado participasse desse debate.

Ou seja, a CNV não foi a única nem a primeira no sentido de imprimir gestos de leitura e interpretação que buscassem, conforme Indursky (2013), exorcizar a memória desse ciclo sombrio da nossa história, todavia faltava ainda à nação um espaço legitimado pelo Estado para apurar os graves delitos cometidos durante o regime. A CNV vem, portanto, representar um importante instrumento para ajudar a reconstruir essa fase da nossa história sob um outro ponto de vista, a partir do relato das próprias vítimas e/ou de seus familiares nas audiências que promoveu por todo o País. Trata-se de um novo espaço de dizer, de uma narrativa outra. (Daltoé, 2016, p. 154).

Essa reunião de esforços, como já se pode enxergar, também nasceu com o objetivo de despertar uma narrativa. É um “novo espaço”, sob “outro ponto de vista”, a partir do relato de vítimas e familiares destas. É claro o alinhamento à defesa dos direitos humanos, mas, tendo em vista que esses direcionamentos principiológicos foram estendidos às comissões estaduais da verdade, também será um fato a ser considerado no decorrer da historização da atuação do Movimento Estudantil do TFA durante o regime militar.

Entre esses princípios da CNV está a sua finalidade, que se trata de:

...esclarecer os casos de torturas, mortes, desaparecimentos, ocultação de cadáveres, identificando e tornando públicas as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas aos crimes contra os direitos humanos. (BRASIL. Lei 12.528/2011, art. 1).

Logo, é importante fazer essa mediação com a História Oral, a História do Tempo Presente e o debate sobre Memória e História, uma vez que as comissões, taxativamente, não tinham o objetivo único ou sequer principal, de historicizar de forma acadêmica ou científica a ditadura civil-militar, mas tinha enfoque nos direitos humanos.

O Relatório da CEV-AP é dividido em IV partes, excetuando a Apresentação, a história de Chaguinha e as referências. São estas:

PARTE I – Organização e funcionamento – Essa parte explana ao leitor as metodologias utilizadas na construção do relatório, as parcerias, os programas extra-comissão que a equipe realizou além das pesquisas. Nesse bloco está o quadro de oitivas. Apesar de todas as 38 oitivas estarem listadas, nem todas tiveram excertos utilizados na escrita do relatório, mas todas foram cedidas para esta pesquisa.

PARTE II – Ditadura civil-militar no Amapá (1964-1988) – Aqui, o relatório divide em sub-tópicos as análises que fizeram. São, em suma, os recortes adotados pela pesquisa. Nessa parte estão as análises de enfoque, onde encontro, inclusive, o recorte de Movimento Estudantil.

Apesar de algumas pesquisas trazerem a menção ao ME da época, como tenho citado aqui, o relatório da CEV-AP foi a maior reunião de arquivos específicos acerca do tema na época. As entrevistas, documentos pessoais, fotos. O levantamento também destaca a heterogeneidade do ME, também pouco amplificada pelas pesquisas que já existiam.

PARTE III – Projeto Memória vai à Escola – Essa parte do relatório descreve um importante projeto realizado pela comissão nas escolas do Estado. Conta com imagens, descrição do projeto e depoimentos dos participantes.

O tratamento com as fontes escritas ocorre sob uma análise da história social, considerando o Movimento Estudantil a representação dos estudantes (ou boa parte destes) diante da ditadura civil-militar no TFA. O relatório reuniu documentos que também foram cedidos em sua totalidade. Para tanto, as entrevistas cedidas à CEV-AP, analisadas sob a ótica da História Oral, como já citado, foram analisadas desde a escolha dos depoentes, disposição destes, produção, roteirização delas e organização. Novamente, toda a análise será feita tendo como enfoque o ME no TFA durante a ditadura.

3.1 A resistência estudantil

O Movimento Estudantil no TFA não se resumiu à atuação da UECSA, e nem ela própria a atuação de sua corrente que apoiava o golpe. É importante destacar, além das dissidências existentes na UECSA, as organizações da Juventude Católica amapaense: Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Operária Católica (JOC). Todas nascidas no início da década de 50, e tiveram uma atuação importante na resistência estudantil do TFA. A JEC, por exemplo, foi responsável por promover pichações contra militares, feitas a partir das ceras das velas da igreja católica. (Rodrigues, 2009, p. 134)

A atuação dessas organizações foi mais livre por dois fatores importantes: contavam com certa proteção da igreja católica e não eram tão vigiadas como a UECSA (CEV, Amapá, 2017, p. 34). Isso, no entanto, não impediu que ocorressem prisões dentro de suas fileiras.

A CIA já estava dentro do país informando, ninguém podia fazer nada que tudo era comunista. Quando estourou a revolução de 64 fomos apanhados. [...]. Eu participava da JOC, Juventude Operária Católica, que teve um trabalho no Amapá de denominar o nome dos bairros de Macapá. Nessa época só chamavam Igarapé e foi mudado para Perpétuo Socorro e no Beirol surgiu o Santa Inês. A JOC passou a fazer enfrentamento e os militares diziam que os padres eram brancos por fora e vermelhos por dentro. Então fomos presos e veio para cá uma Comissão Sumária e passou a fazer interrogatório de todas as pessoas que tinham sido presas ou informadas pelo SNI ou suspeitos de serem contra os interesses da Revolução. (Josias Nogueira Hagen Cardoso. Depoimento cedido a CEV/AP, em 21 de agosto de 2014)

Em seu depoimento, Josias relata desde a prisão dele e de outros estudantes à proteção que a igreja promovia. A JOC, como podemos ver, não tinha sua atuação principal voltada às pautas estudantis, mas, por abrigar estudantes que não concordavam com o regime, teve sua estrutura vigiada e membros presos.

Outros relatos de estudantes da época são importantes para compreender as peculiaridades do ME amapaense. Guilherme Jarbas, por exemplo, foi um dos únicos integrantes da JOC que não fora preso devido sua proximidade com as lideranças da igreja.

Vale destacar que Guilherme Jarbas foi presidente dos Grêmios Literários Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, secretário-geral e vice-presidente da UECSA. Em seu relato, Guilherme fala da repressão aos estudantes e da resistência que havia dentro da JOC.

“– Você anda com quem?” “– Eu ando com o fulano...”. Bastava citar o nome que eles recolhiam. Então aqueles ligados às entidades estudantis, eles todos foram realmente presos. O único que não foi preso foi eu, porque eu tinha uma proteção da igreja, do bispo Dom Aristides Piróvano. Eu era da Juventude Estudantil Católica, e havia um movimento, eu tenho até essa foto da discussão aqui no Cine João XXIII, da Juventude Estudantil Católica, onde eu fiz um rebate a uma agressão que o padre Antônio sofreu por parte do Ribeirinho. O padre Antônio, numa solenidade, em vez de cantar o hino nacional, ele pediu que rezassem o pai nosso. E eu prestei uma solidariedade ao padre Antônio, afinal eu vivia ali com os padres. Então, eu fui chamado pelos padres, pelo Dom Aristides que eu deveria ser da Prelazia, que eu estava sendo cassado por esse Capitão Fontenelle. E eu fiquei até aliviar a barra. Eu acabei não sendo preso. O único dirigente de entidade que não acabou preso por causa dessa proteção. (Guilherme Jarbas Barbosa de Santana. Depoimento cedido a CEV/AP, em 21 de agosto de 2014).

O depoimento de Guilherme nos leva a concluir, além da proteção e influência real da igreja sobre os ditadores, que o levantamento de prisões e repressões em arquivo nacional ou no sistema judiciário, não dariam conta de relatar o que ocorria nas fileiras estudantis. A proteção da igreja católica era importante, mas estudantes que faziam parte de diversos movimentos, acabavam sendo presos por razões diversas.

No dia 15 de março, me recordo bem, foi uma festona e no dia 31 a Polícia Federal, o exército invadiu a sede do Grêmio Rui Barbosa. Então, nesse período o movimento estudantil, ele se voltava mais para a área cívica e cultural com pequenos movimentos sociais diferenciados, e era também um grupo muito pequeno, ligado mais ao Messias Tavares, ao Ribeirinho, tinha o Ermínio Gurgel. Era um grupo muito pequeno. [...]. Quando o governo federal tomou o grêmio, nós tínhamos ali uma biblioteca. Toda história estudantil do Amapá, estava encadernada através daquele jornal O Castelo, que eles levaram tudo. Fecharam e aí veio a ditadura que acabou com o movimento estudantil. [...]. Aí, quando veio a revolução, fecharam lá, fizeram até um departamento da Polícia Federal. Inicialmente a UECSA acabou pagando um preço alto e tornou-se aí um departamento da Policia Federal. O grêmio Rui Barbosa fechou. Quando veio o governador, o General Luiz Mendes da Silva, ele fez uma reunião no Colégio Amapaense e fez uma proposta numa Assembleia. Naquele tempo os alunos estudavam no segundo andar que tinha uma sala enorme. Ele transformaria ali numa escola e que depois reformaria. Então, naquele primeiro momento da revolução, se tornaria um ponto de encontro de estudantes. Na verdade, ele terminou a escola, saiu a escola de lá, fechou o grêmio novamente. E no governo de Lisboa Freire em 73, foi entregue para os Campus Avançados. Aí passou [ser] a sede dos Campus Avançados. (Guilherme Jarbas Barbosa de Santana. Depoimento cedido a CEV/AP, em 21 de agosto de 2014).

Esse trecho do depoimento de Guilherme nos leva a uma ligação direta da atuação dos militares em âmbito nacional e territorial. O golpe atuou de forma incisiva sobre os movimentos estudantis organizados e não tardou em reprimir qualquer tipo de manifestação por parte desta classe, que era vista como uma ameaça. No Território Federal do Amapá não foi diferente, e apesar de contar com apoio, os militares tiveram trabalho para conter a classe no Amapá.

Soma-se a essas especificidades as questões territoriais e regionais. Sob aparência pacata, provinciana e submissa, a sociedade amapaense escondeu, com dificuldade, as movimentações de resistência ao golpe militar. Deu-se de forma “escondidas, disfarçada de molecagem, de artes, de músicas, de silêncios, de recusas e afirmações” (CEV/AP, 2017, p. 35). Os anos de chumbo, como eram chamados os anos do regime militar, foram também de amadurecimento político da juventude amapaense.

Outra organização que atuou no período, em forma de resistência à ditadura, foi a Juventude Oratoriana do Trem (JOT). Tratava-se de um grupo de jovens que saía a noite, de bicicleta, quebrava placas de sinalização, lâmpadas de iluminação pública, apedrejava órgãos públicos e depredava veículos oficiais. À época, o regime via as atuações como vandalismo, mas eram claramente atuações no sentido de resistência à ditadura militar no território.

...a gente se reunia na JOT [Juventude Oratoriana do Trem] em uma sala da paróquia da Igreja de Nossa Senhora da Conceição [...]. Éramos supervisionados pelo Padre Vitório Galianni, que apesar de descontente com a situação brasileira, preferia e até nos aconselhava a se preocupar com o futebol, esportes e lazer, mas fechava os olhos quando discutíamos aqui e ali alguma coisa de política. Não propriamente de política, mas a gente gostava de rock, jovem guarda, Beatles, Elvis, cachaça, calça boca de sino, cabelos grandes, e a polícia, especialmente, o delegado Oscar que era magrinho e enrugado e apelidamos ele de “Calo Seco” e o delegado Uchôa, meu tio, perseguiam a gente sem quê, nem porquê. Um dia decidimos aprontar. Quebrar placa de rua, lâmpadas de poste e apedrejar a Central de Polícia que ficava ali onde é o BANAP [Banco do Estado do Amapá] hoje. Saíamos pelo menos uma vez por semana para estas incursões até a nossa proeza máxima que foi quebrar todas as lâmpadas da pista do aeroporto. A coisa repercutiu muito e decidimos parar com aquilo [...]. (Entrevista de Raimundo Simões Nobre, concedida a Dorival Santos, em fevereiro de 2000. In: SANTOS, Op. Cot, 2001)

Tratava-se de uma impossibilidade de resistência armada ou organizada sob vias estruturadas. Era a maneira como os estudantes conseguiam atuar, em forma de manifestações e depredações silenciosas quanto ao som, mas muito barulhentas em relação ao seu significado diante dos ditadores.

Outra organização clandestina de resistência à ditadura existente na época, foi o Clã Liberal do Laguinho. O grupo era formado, sobretudo, por jovens moradores do bairro do Laguinho (dentre eles, alguns estudantes do Colégio Amapaense), e tinha o propósito de discutir arte, religião e ciência, e, todavia, acabou incomodando o regime militar.

Isso se deu graças à “independência e a criatividade com que o grupo funcionava”, isso era inconcebível no contexto repressivo sob o qual se encontrava o TFA. Fernando Canto, um dos presos na época, recorda o seguinte:

Eu participei juntamente com o João de Deus de todas as atividades do Clã Liberal do Laguinho, no período de 1972 e 73, e até se romper mesmo com auge da missão esdrúxula que aconteceu aqui no Amapá e Macapá que chamava “Operação Engasga -Engasga”. Mas, a gente era um grupo de jovens que tentava buscar além das atividades é... sociais e religiosas, que nós éramos ligados também muito à igreja São Benedito do movimento jovem, mas que não era o suficiente pra gente estender nossas próprias ideias e também nossas canções, e a gente reunia no Clã Liberal do Laguinho pra, no quintal do Pai do João de Deus, (inaudível) no lado do poço do mato, lugar muito aprazível, muito bonito, a gente se reunia lá pra se divertir e pra conversar, era tão interessante que até o programa de rádio ia ser transmitido direto de lá, e a gente ia. (Fernando Pimentel Canto. Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016)

Mesmo com a insistente alegação da existência do clã apenas ligado às questões culturais e artísticas, a repressão também os atingiu. Todavia, não há negação dos depoentes participantes do movimento da época, de que essas expressões eram formas de resistência ao golpe de 64.

O grupo tinha em torno de setenta integrantes, muitos menores de idade. Esse número elevado (para a época e o território), permitia conversas e discussões que ameaçavam a estrutura repressiva dos ditadores. O Estado reprimiu fortemente o Clã do Laguinho.

Nós não tínhamos universidade. Todo mundo tinha que ir pra fora estudar tanto que nós fomos, mas depois do “engasga-engasga” e também quando eu terminei o meu curso essencial em 1973 eu ia sendo expulso por causa disso, eu tive que ir embora daqui eu fui preso. Toda hora a gente ia ser preso a qualquer motivo. A repressão era tão grande que a gente era marcado. A gente já sabia que se fizesse qualquer coisinha, andasse sem carteira de identidade, ia preso, um negócio que realmente revoltou muita gente, traumatizou de alguma forma, né? Até hoje a gente sente isso. Depois que a gente foi preso junto lá no exército, e os outros nossos companheiros estavam presos em Macapá, enjaulados lá, tanto que existe vários depoimentos e tudo mais. Mas agora, tu tava falando a respeito dessa formação intelectual que nós tínhamos. Não chegaram a levar livro meu e nem entrar em casa, o cara que foi me buscar foi o Amaury, o filho do seu Amaury [Antônio Farias] o subtenente R2 cheio de soldados armados com metralhadora [...]. A ditadura tinha que ter um, um, bode expiatório, né? E no caso seria aqueles caras que tinham sido presos na época de 64, então vai lá, prende o padeiro, prende o Chaguinha, prende o Gurgel, prende o Isnard, prende o Odilardo, quer dizer, tudo isso é carta marcada, ao passo que eles estavam fazendo um tipo de atividades que se soube depois que não era exatamente um combate aos criminosos. (Fernando Pimentel Canto. Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016)

Como bem destacou Fernando Canto, qualquer movimentação minimamente intelectual, ofendia os ditadores que estavam no poder. As prisões eram arbitrárias, e feitas a qualquer custo e sem justificativas plausíveis. O depoimento de Rui Gonçalves, integrante do grupo, reverbera, no entanto, a faceta política entranhada no Clã do Laguinho:

Manoel Bispo, artista plástico e tudo, ele foi do primeiro, se eu não me engano foi o primeiro presidente do Clã Liberal do Laguinho [...]. Era interessante o movimento. Mas ali se reunia para debater mesmo alguns assuntos, debatia, conversava [...]. Principalmente política, questões mesmo do Amapá. Não era todo final de semana, mas todo uma vez por mês a gente fazia uma feijoada lá na casa do João de Deus, que ficava nas Nações Unidas, na rua de casa. (Rui Gonçalves Lima. Depoimento cedido a CEV/AP, em 02 de setembro de 2016)

Como pode-se notar, o grupo era bem mais que uma dissidência ou uma aleatoriedade. Tinha uma estrutura estabelecida. Um presidente, pautas, pontos e dias de encontro.

3.2 A resistência dentro da UECSA

Apesar da declaração de apoio da União dos Estudantes dos Cursos Secundaristas do Amapá ao Golpe de Estado de 64, o próprio regime identificou e tinha conhecimento da existência de estudantes “subversivos” dentro da entidade.

Logo no início do golpe, estudantes ligados a entidades foram presos e interrogados pelos ditadores. A exemplo disso, o estudante Savino, foi preso na Fortaleza de São José de Macapá, logo no início do golpe, por prestar apoio ao diretor do Colégio Amapaense e chefe da Guarda Territorial, Uadih Charone.

Quando iniciou a Revolução ficou um ambiente meio pesado. E o governador, se não me engano, era o Terêncio Porto. Eu me candidatei a presidente da UECSA. O Charone foi chamado pelo governador pra ele prender o Amaury Farias e um outro cidadão lá de Amapá, o Elfredo Távora. Mandou prender os dois que eles não obedeceram a ordem dada pelo governador. Charone disse que não ia prender porque não havia razão. Não prendeu. Rebelou-se. O que ele fez? Aquartelou-se na fortaleza junto com os guardas territoriais. Ele (o governador) telefonou pra 8ª Região Militar do exército, pedindo reforço porque a guarda estava sob o comando do chefe da guarda que não queria seguir as ordens emanadas do governo. Chegou aqui um avião, à tarde, uma guarnição do exército cheio de metralhadoras. (José Figueiredo de Souza. Depoimento cedido a CEV/AP em 11 de novembro de 2014)

O estudante José Figueiredo, que era conhecido como Savino, se utilizou de sua liderança estudantil para promover um movimento de resistência ao ato arbitrário dos ditadores. Organizou uma passeata pelo centro da cidade até a Delegacia de Polícia em busca de Uadih Charone, diretor do Colégio Amapaense na época.

Nessa altura, eu reuni os alunos dos colégios aqui no centro. O Charone ficava sempre onde é a Biblioteca Elcy Lacerda. Era ali que funcionava a chefia de polícia. Eu convoquei os estudantes pra lá. Eu me lembro bem que a esposa do Amaury Farias, a Deusolina Farias, estava lá e várias lideranças. Pegamos a bandeira brasileira e saímos rumo a fortaleza pra dar apoio ao tenente Charone porque o exército já estava lá. Chegamos lá, eu subi a rampa, quando eu subi a rampa, eu disse: “ – Peço a palavra”, “ – Tá Preso! Encoste ali! Seu Charone quem é esse rapaz?”, “ – É um líder estudantil”, “ – Tá preso o senhor também!”. Na hora eu fui preso e já tinha outros presos lá também. Então, daí começou a história da revolução conosco, principalmente com os estudantes. O primeiro caso político estudantil foi esse. Fui preso lá. [...]. Quando eu entrei no ônibus, o que tinha de pente de metralhadora!! Eles vinham aqui parece iam pra uma guerra. Esse governador fez pensar que tinha realmente uma guerra aqui. Ele disse, inclusive, que eu havia colocado um monte de tambores para o avião não descer, avião búfalo. Não era nada disso. Aí, mandaram me levar lá para o xadrez. Primeiro me jogaram numa cafua fedorenta. Me deram uma caixa [de fósforo] pra eu riscar e cheirar, que era só o que diminuía o fedor. (José Figueiredo de Souza. Depoimento cedido a CEV/AP em 11 de novembro de 2014.)

A consequência desse ato de resistência levou à prisão do então estudante da época, José Figueiredo. O mesmo fora preso sob a justificativa de perturbação de ordem e incitação ao comunismo.

Outro estudante, de nome Nestlerino dos Santos Valente, também relatou movimentos resistentes ao regime militar dentro da UECSA. Destacou, claramente, a existência das duas correntes:

Eu fui presidente do grêmio Rui Barbosa, concorri a presidência da UECSA, aonde eu perdi as eleições, mas a época no Colégio Amapaense tinha algumas figuras que gosto de lembrar e me dá até uma crise de risos, eram pessoas que eu respeitava muito, como: José Ribeiro que era um guarda territorial envolvido em um processo de política estudantil, Messias Tavares, Isnard Lima, José Figueiredo de Souza (Savino), Raimundo de Souza de Oliveira, o irmão dele, Francisco de Souza de Oliveira [...], e tantos outros nomes importantes da política estudantil, só que se dividiam em duas correntes: uma dos “subversivos” comunistas e a outra daqueles que faziam apenas a política estudantil, uma espécie de atividade social para a congregar a classe estudantil para participar desses movimentos sociais todos, menos o político, e a gente participava de um grupo mais político, mais politizado. (Nestlerino dos Sanos Valente. Depoimento cedido a CEV/AP em 28 de agosto de 2014)

Nestlerino destaca a existência das correntes conhecidas como “os subversivos” e a “direita”. Ele fazia parte dos subversivos, que, apesar de serem conhecidos assim, a maioria não tinha qualquer ligação, por exemplo, com o Partido Comunista do Brasil e nem tinha contato com as ideologias praticadas pelo mesmo.

Imagem 1. Eram estudantes insatisfeitos com a ditadura militar no Brasil e no TFA.

Foto em preto e branco de pessoas sentadas

Descrição gerada automaticamente

Fuente: Chaguinha-AMAPÁ, 2007

3.3 A identidade subversiva

Para além das intensas movimentações dos estudantes do Território Federal do Amapá, é importante destacar a maneira como eles eram “encontrados”. Como vimos, não importava a qual entidade ele pertencia, e se pertencia a alguma. O estudante precisava apenar conter determinada característica que o regime considerasse ameaçadora, e isso incluía características pessoais, gostos, grupos que andavam juntos, musicas que ouviam. Os critérios eram muitos, e eram identificados, muitas vezes, por professores e diretores dentro das escolas.

O cargo de diretor escolar, na época, era considerado uma função estratégica para o regime. Logo, a quantidade de infiltrados repressores nos ambientes estudantis era grande. De acordo com o depoente Fernando Canto, para qualificar um estudante como “subversivo” valiam os mais diversos absurdos: “o referido professor (Mário Quirino) propagava que todo cabeludo e barbudo era subversivo e eu estava incluído por usar cabelo grande”.

O professor Mário Quirino disse-me que era agente do Serviço Nacional de Informações e mostrou-se brutal no tratamento a mim dispensado, o que gerou discussão, quase motivando minha expulsão do colégio, cogitada por ele, o que não aconteceu graças à intervenção da orientadora. Afinal eu estudaria o último ano do curso de contabilidade. (Resistência, Belém, maio de 1980)

Na impossibilidade de uma resistência física ou armada, o corpo era instrumentalizado pelos estudantes para declararem o seu inconformismo. Isso era um tanto quanto difícil, tendo em vista que o próprio aparato estatal que controlava as escolas já estava atrelado ao regime, assim como o funcionalismo público que, muitas vezes, eram pais e parentes dos estudantes.

Naquela época nossa atividade estudantil era um tanto restrita porque todos os estabelecimentos de ensino no Território eram de propriedade do governo, de modo que era difícil fazer uma campanha que não afetas se o governo. E você que estudava na escola do governo terminava se prejudicando. [...] eu, o Nestlerino (Valente), o Aroldo Franco, Celso Saleh, Adelbaldo Andrade, Jair Farias, Messias Tavares, Alopércio Franco, uma série de estudantes abraçavam a política estudantil. Quando começamos, a gente era penalizado. Quando tomávamos alguma iniciativa ou medida que esbarrasse no governo, com certeza seríamos punidos. (Josias Nogueira Hagen Cardoso. Depoimento cedido a CEV/AP, em 19 de setembro de 2014.)

Não havia muito para onde correr, e foi justamente esse tipo de estrutura narrada por Josias, que incentivou a atuação dos grupos clandestinos e agrupamentos católicos que mencionamos anteriormente.

4. CONCLUSÕES

A forma como o Movimento Estudantil do Território Federal do Amapá atuou durante a ditadura militar, em muito se difere de outros estados. Seja por questões estruturais, muito ligadas à categoria de território federal, seja por questões culturais, que não permitia, desde sempre, um claro movimento de resistência dos estudantes. A característica de movimento cultural e artístico serviu como camuflagem para esses aglomerados de jovens estudantes que estavam insatisfeitos com o golpe de Estado recém inaugurado.

Pelas características regionais, que faziam do TFA um local pequeno e fadado a não possibilidade de segredos, os jovens estudantes que resistiram à ditadura o fizeram ora organizados, ora de qualquer forma, mas é certo que não deixaram de resistir. Infelizmente, a bibliografia sobre o tema ainda é muito limitada quando se fala especificamente do Território Federal do Amapá. O presente artigo conseguiu reunir as principais – e talvez únicas – fontes que debatem essa resistência estudantil ao golpe militar.

Os estudantes, numa perspectiva de classe e em âmbito nacional, foram vistos como resistentes aos terrores e investidas ditatoriais no país, isso se explica também pela heterogeneidade presente nas instituições de ensino, sejam elas de nível superior ou médio. O Território Federal do Amapá, apesar de carregar uma cultura que favorecia os ditadores, não contou com apoio total da população, e os estudantes que conseguimos identificar nesse trabalho provam isso.

Os apoios declarados aos ditadores também foram frutos dessa designação cultural que já vinha de muito antes do golpe. Os filhos e filhas dos funcionários públicos de um território federal, não tinham muitas saídas a não ser seguir as orientações do Estado. A UECSA, principal entidade, prova essa tese. Já nascera sob a orientação de não resistência a qualquer ordem incumbida por qualquer poder estabelecido. Ao mesmo tempo que isso comprova e reverbera a repressão sofrida pelos estudantes, também mostra como o regime militar agia, estruturalmente, muito antes do golpe militar ser instalado.

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Autor

Marcella Viana. Formada em História pela Universidade Federal do Amapá; Mestranda em História pela Universidade de Brasília; Pesquisadora de Movimentos Sociais, ditaduras e democracias. Integrante do Grupo de Pesquisa de Democracias e Ditaduras da Universidade Federal do Amapá.

Conflito de interesses

Declaro que não há possível conflito de interesses.

Financiamento

Não houve assistência financeira de partes externas para este artigo.

Agradecimentos

N/A

Viana, M. (2021). A resistência estudantil no Território Federal do Amapá durante a ditadura militar no Brasil. Religación. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades, 6(28), 100-112. https://doi.org/10.46652/rgn.v6i28.795

General Section | Peer Reviewed |

ISSN 2477-9083 | Vol. 6 No. 28, 2021. pp 100-112|

Quito, Ecuador|

Submitted: 01 March 2021 |

Accepted: 19 May 2021 |

Published: 20 June 2021 |